quarta-feira

Porquê?
Não vou negar que me perturbou. Que o sangue pingou do nariz para a boca e da boca para dentro e soube a fel.
De repente o meu saco encheu-se, muita gente lá dentro, uma azáfama barulhenta.
Estou tonta.

terça-feira

- Olá Edna.
- Com que direito é que me estás a ligar?
- Estou a ligar-te para te desejar bom ano... Que tudo te corra como desejas...
- Porque é que me estás a ligar?
- Deixa-te disso. Sabes que te quero bem!
- A sério?! Olha que novidade!
- Baixa as defesas! Não comigo, não o faças comigo!
- Meu caro, faço-o especialmente contigo!
- Olha... Não quero fical mal contigo... Desejo mesmo que sejas feliz...
- O bom samaritano!
- Nada disso! Tu tens tudo para seres uma mulher feliz! Não o és porque não queres, tens medo de ser feliz... essa é que é a verdade.
- Devías montar um consultório. Ganhavas bom dinheiro.
- Isso, continua assim... Eu conheço-te Edna, não me vou zangar. Tens medo! E só me apercebi disso depois que nos separámos...
- E que tu te casaste? É verdade, conta-me lá... então como te dás no sagrado matrimónio?
- Bem, muito bem.
- Jura! E foi por isso que me ligaste?
- Para te desejar um bom ano! Um bom ano!
- Sim, claro... Mas para isso foi preciso lembrares-te de mim! Ou não?
- Eu não te esqueço.
- Coitada da tua amantissima esposa...
- Não tem nada a ver.
- Ah! Estou a ver que não! Que foi? Deu-te saudades?
- Não é isso, vê lá se entendes...
- Claro que entendo! Estás arrependido!
- De forma algum. E custa-me ter de te dizer isto... desta forma e por telefone. Como te disse, liguei para te desejar que sejas feliz no terminar deste ano e no começo do que vem. Tu és especial, mereces ser feliz. Se deixares de ter medo da felicidade. É só isso.
- Ah! Muito obrigado! A minha vida ficaría incompleta sem os teus votos! Pena que eu não te deseje o mesmo...
- Vou fazer de conta que nem ouvi...
- Mas sabes... para a minha felicidade ser completa só falta mesmo uma coisinha de nada...
- Diz.
- Não voltes a incomodar-me.
- Tenho pena que sintas assim...
- E eu tenho pena de ti. Pena que existas.

segunda-feira

Não apareceu.
Fez birrinha e não deu as caras.
Era só o que me faltava, um homem feito a fazer beiço e a amuar.
Além disso, retarda a minha sede de vingança. Pensa ele ou qualquer outro que me desligam o telefone na cara e fica por isso mesmo? Por um mero pedido de desculpas? Que aliás o Magalhães ainda nem o proferiu.
Mas vai fazê-lo. E vai desejar amargamente me ter tratado desta maneira.
O facto de me conhecer mais intimamente não lhe dá privilégios, não lhe dá o direito de me ignorar, não lhe dá o direito de me tratar como uma criança que se põe de castigo.
A ver vamos.
Eu não me esqueço, nem que dure cem anos.

domingo

- Vou chegar hoje ao final do dia e espero que me recebas... Temos de conversar.
- Conversar... Pois.
- Sim, conversar, falar. Como dois adultos que somos.
- E mais?
- Mais o quê?
- Desentendido Magalhães?
- Não seja vulgar!
- Púdico! As Beiras quase o tornam um padre...
- Pois a cidade a si Edna, não lhe alivia a estupidez! Com licença!
(Desligou-me o telefone, a grande besta... É a segunda vez que me desliga o telefone na cara. Isto não vai ficar assim.)

sábado

O silêncio do escritório a um Sábado de manhã permite desenvolver sem interrupções. Mas também abre brechas no pensamento, tudo se ouve e embora esteja completamente sózinha o vicio levou-me a fechar a porta do gabinete.
Ninguém vai entrar.
Mas fecho-a porque preciso que tudo o que está aqui, comigo e agora, nada saia, nada transpire que seja de uma gota só, do meu sangue, das minhas iras suadas, das vezes do sexo ocasional fora de horas, das lágrimas que não choro.
Preciso de me sentir livre nestas paredes muradas que já escutaram palavras de teimosia, de negócios, de desafios, as da despedida para sempre, as de uma louca que conseguiu romper as minhas fronteiras e aparecer ao ataque de quem aqui pisou. O meu terreno, a minha toca.
Afogo-me neste silêncio ruidoso.

sexta-feira

Finalmente.
O regresso à (quase) normalidade. Ainda falta aquela cretinice do final do ano, dos tachos e dos apitos, o convencimento de que se vai começar outra vez alguma coisa.
Isto só traz prejuízo à empresa.
Pelos empregados que andam com a cabeça noutra esfera e pelos clientes que se ausentam para outra esfera.
Até o Magalhães.
Que raio de interesse haverá nas Beiras?! Não estou nada a ver aquele homem fora da confusão da cidade, a fazer de pai extremoso, sem gravata, rodeado da famelga...
Vou ter que esperar para descobrir mais sobre este Magalhães misterioso... Será o meu Cabo das Tormentas, passe a piada fraquita...

quinta-feira

- Come mais um bocadinho! Mal provaste!
- Não quero mais.
- Ainda com a mania das dietas?
- Não quero mais.
- Estive eu a fazer o perú com tanto esmero e tu só debicas... Olha! Come só do recheio! Tem nozes e castanhas como tu gostas!
- Mãe, não me estás a ouvir. Não quero mais.
- Tu tens que ir ver esse fastio! Isso não é normal!
- Não comeces...
- Olha para isto! Tanta comida! Ainda pensei que o Magalhães viesse, mas quando ele ligou...
- O Magalhães ligou?
- De manhãzinha. É de uma delicadeza aquele senhor...
- O que é que ele quería?
- Desejar-me um bom Natal. Que quando voltasse quería visitar-me, trazer-me uma lembrança...
- Voltar? Mas onde é que ele está?
- Está para as Beiras. Ai... Ele até me disse o nome da terra mas eu agora não me lembro...
- Beiras???
- Sim! Ele e o filho, foram ter com a familia que tem lá para cima!
- Filho?!
- Mas... O que é que se passa? Tu não sabes que o Magalhães tem um filho?
- Eu não!
- Não?!
- Não.
- Mas de que é que vocês falam?! Tanto tempo o homem a trabalhar para ti e tu não sabes destas coisas?
- Mãe, ele era meu empregado! Não tenho que saber da vida privada dos meus empregados!
- Edna! Não foi um empregado qualquer! Não é um homem qualquer! Tu não trazes os teus empregados todos cá a casa!
- Era só o que faltava!
- Pois por isso mesmo! O homem ajudou-te tanto no teu problema, é tão teu amigo e tu nem sequer sabes que ele tem um filho?! Que coisa esquisita...
- Não vejo porquê...
- Mas sabes que ele é divorciado?
- E?
- Ai, meu deus! Mas tu andas com a cabeça onde?!
- Mas que importância tem isso?
- O quê? Mas tu ainda não te apercebeste que ele te arrasta a asa?
- Que raio de frase mais parva...
- Tu percebeste!
- Aquilo que eu percebo é que vocês os dois são cheios de segredos e confidências.
- Não senhora! Ele é muito respeitoso! E tu devías... sabes... tu sabes Edna.
- Sei o quê?
- Não me faças de tonta! Tu sabes o que quero dizer!
- Não, não sei. E acho que mesmo que adivinhasse não ía gostar de saber. Afinal: Quando é que esse Magalhães aparece?
- Acho que só a seguir ao Natal...
- Hum... Então deixa-o vir...

quarta-feira

Hoje é aquele dia idiota e deprimente em que as pessoas fingem que amam a familia.
O dia em que se alambazam alarvemente nas casas dos outros.
O dia em que trazem para casa os mexericos de alguma ovelha ranhosa da familia que serviu de pasto para conversa ao serão até à troca dos presentinhos miseráveis com que dizem que se adoram tanto. Hão-de guardar os papéis de fantasia mais bonitos e os laços dourados para aproveitar para embrulho de alguma chinesice que compram para oferecer no Natal seguinte. Hão-de comparar o preço das suas ofertas com as que recebem e prometem que no ano que vem levam o troco.
Sei do que falo.
Já passei por isto na minha infância e na adolescência e assim continua a ser.
A minha Mãe mantém a tradição e eu lá faço figura de corpo presente mas só a seguir ao jantar. Já não dá para aguentar tantas horas a levar com os predicados da familia. E da vizinha, que acaba por ser mais familia que a de sangue, tantos anos no mesmo prédio.
Hão-de haver crianças aos guinchos e um primo qualquer -normalmente o mais obeso- fará de Pai Natal. Todos riem muito. Todos falam muito alto como se estivessem a quilómetros de distância.
Na verdade não são kms. São polos opostos do planeta. Apenas tentam disfarçar.

terça-feira

Entre ontem e hoje tenho tentado o contacto com o Magalhães sem êxito. Já lhe deixei mensagens. Nada. Não percebo porque não me atende, porque foge do que aconteceu. Aconteceu, aconteceu. Ponto. Foi bom para os dois. Não adianta fingir que não se passou nada assim como também não traz beneficio algum fazermos de um bom bocado de sexo um tabu em que ninguém pode tocar sequer em pensamento.
Eu tenho pensado bastante, soube-me bem, penso no tanto que me deu prazer e não acredito que ele não o faça. Se acha que é mantendo o silêncio que evita seja lá o que for está muito enganado.
Quanto mais se foge mais se cai nas malhas do apetite proibido e o Magalhães não será excepção.

segunda-feira

Não projectei que assim fosse, não tracei nenhum plano diabólico que me levasse aqui. E não estou arrependida que tivesse acontecido.
Ontem, quando cheguei da minha corrida da manhã tinha o Magalhães à porta da escada. Deu-me vontade de rir, encostado à ombreira, encolhido cheio de frio, a gola do sobretudo a tapar-lhe as orelhas.
Não trocámos uma única palavra. Nem à entrada, nem no elevador, nem na minha sala. Eu fui tomar banho e quando voltei ele tinha feito um chá, estendeu-me a chávena fumegante, sentou-se de frente para mim mas sem me olhar. Eu, muda. À espera do embate, da primeira palavra, decidida a ver quem cedía ao silêncio. Permanecemos assim durante muito tempo, sem som algum, até que ele me olhou nos olhos e disse o meu nome. Só disse o meu nome e ficou suspenso. Dava para ver as reticências do discurso que viría a seguir. Quase de certeza um sermão, uma repreensão, mas a forma como disse o meu nome e o modo como me olhou, a maneira como segurava entre mãos a chávena atirou-me o Magalhães para outra dimensão. E atirou-me a mim para junto dele, a beijar-lhe os olhos, a testa, a boca, a baixar-lhe a gola do sobretudo grosso, a sentir-lhe o pescoço forte e cheiroso.
Não me afastou como já o fizera. Abriu-me o roupão turco, beijou-me o umbigo, o peito, os mamilos, excitou-me. Toquei-lhe as calças e senti o pénis duro, libertei-o da roupa e ele sentou-me entrando devagar em mim. Senti o comprimento do seu pénis a entrar na minha vagina, parecía uma coisa sem fim, lenta, um acto perfeito no deslizar.
Senti-o ejacular, quente, mas não parou o movimento até eu atingir o orgasmo.
E foi muito bom, muito bom mesmo.
Ficámos abraçados, eu sentada em cima dele, ele meio vestido, o sobretudo afastado, as calças em baixo, sem dizermos nada, nada, absolutamente nada.
Depois levantou-se comigo ao colo, levou-nos ao meu quarto, arrancou a roupa de cama para trás num safanão, atirou-me e despiu-se.
O Magalhães tem um corpo belo. E já não é um jovem. Vi a erecção surgir de novo, achei-o ainda mais bonito.
Afastou-me as pernas. Passou um dedo na linha fina dos meus pêlos púbicos e depois senti a lingua molhada e quente na minha vulva, no clitoris, fechei os olhos numa sensação tão boa como há muito tempo não tinha. Sabía o que fazía, onde me dar prazer, acelerar, retardar e tudo se prolongava naquela lingua. Penetrou-me novamente. Tivémos um orgasmo quase em simultâneo.
Senti-me verdadeiramente feliz.
Agora que penso no que aconteceu, dá-me vontade de repetir. Mais e mais.
Mas não lhe sinto amor, isso eu sei.

domingo

Não vou almoçar a casa da minha Mãe. Aliás, essa religiosidade dominical dos almoços acabou. Não tenho mais condições de aturar fretes. Chega. Já sei que de inicio ela vai contestar, depois pedir mas habitua-se.
O que estranho é o silêncio do Magalhães. E sei que também não ligou para a minha Mãe ou ela ter-me-ía dito. Não quero ser eu a dar o primeiro passo, compete-lhe a ele devolver-me a resposta.
E nem sequer lhe vou admitir que me ignore. Ai dele!

sábado

Ao Sábado de manhã é a hora que melhor se produz no escritório.
Não há ninguém, sou só eu.
Cheguei com uma vontade férrea e resolvi uma série de questões pendentes, arrumei papelada que tenho vindo a chutar porque é uma coisa que me aborrece sobremaneira. Aliás tudo o que é trabalho de rotina enfastia-me, repudia-me, bloqueio. Há certas coisas que se fazem maquinalmente e são essas precisamente que tenho alguma dificuldade em encaixar, pergunto, explicam, volto a perguntar de outras vezes, repetem e eu não consigo fixar. Ergue-se uma barreira qualquer que me impede de reter este tipo de informação.
Mas hoje consegui dar a volta a isto tudo.
Sinto uma energia como há muito não tinha.
Tenho pena que o Magalhães esteja armado em amuadinho; Ele ía ficar surpreendido com este tipo de actividades que hoje cumpri. Era sempre ele que tratava destas coisinhas chatas... Tenho que confessar que este homem faz-me falta e não só a nível laboral. Até agora parece ser a segunda pessoa na minha vida que não demonstrou medo de mim, que me encara, que me cospe nas ventas o que lhe vai lá dentro.
Onde andará o Magalhães?
Será que se lembra de mim como eu dele?
Será que lhe faço falta?

sexta-feira

De repente tudo parece ter-se resolvido.
Refiro-me a mim. Ao voltar a ser aquilo que era. Ou pelo menos o que o meu fisico era, o sangrar do nariz, o fervilhar por dentro, a vontade de ter sexo.
Como um interruptor que se liga e faz luz. Como uma coisa que volta ao seu proprietário depois de ter andado desaparecida por algum tempo, mais escondida dentro de uma gaveta que não se consegue recordar onde se guardou.
Eu sou muito organizada mas parece que desta vez preguei uma partida a mim mesma e encafuei-me num armário qualquer só para me arrumar quando as visitas chegassem. Só que as visitas sou eu também.
Acontece assim, revisitar-me, mas completa, encontrar-me na fúria de todos os dias.
Sei que deixei de sentir nada. Ou seja, deixei de sentir o que pouco sentía: nem muita alegria, nem muita raiva, era tudo de raspão.
Agora não, tudo se entranha.
Como é bom voltar a casa.

quinta-feira

Falemos de mim.
Falemos do que vi nos outros, me fez lembrar do que pensei estar apagado, falemos destas horas que perfazem já tantas neste espaço amarelado como as memórias que me ofendem por não quererem chegar. Eu devía-me ter lembrado por mim, não por questões dos outros, socos, arranhadelas, insultos.
Falemos de mim, das explicações que compro a este pateta alegre que precisa tanto de análise quanto eu.
Apetece-me insultá-lo, chamar-lhe incompetente por não me ter feito recordar por mim, por não me ter avisado que a qualquer altura um click podería accionar o mecanismo desta máquina infernal que se chama cabeça. Conto-lhe metade do que se passou, aguardo que sugira a outra parte que falta. Mas não, perde-se em divagações do déjà vu, das partidas da mente, das semelhanças e simpatias com que o subconsciente se guarda para preservar uma sanidade mais ou menos estável, agrupar-se para não se isolar, atira-me Freud, volta ao desejo, à minha falta de estímulos para a predisposição do coito, a ausência de orgasmos mentais resolvidos no corporal.
Apetece-me vomitar-lhe nos pés, arruinar-lhe de vez as peúgas de fibra tão má como a da alcatifa amarela.
Mas só sinto um fio quente a molhar-me o lábio. Oxalá sangre bastante até as memórias escorrerem todas cá para fora.

quarta-feira

Primeiro o som de vozes muito alto. Depois, um estrondo. Dois. Vários. Gritos. Confusão.
Abri a porta e cheguei à sala.
A Paula estava completamente desfigurada, agarrada pelas outras mulheres, o Daniel com as mãos na cabeça, os homens de volta dele. Papéis no chão, uma secretária tombada, o computador caído.
Fez-se um silêncio de morte quando deram pela minha presença.
Depois uma série de palavras que me chegaram aos rolos, às convulsões, nada que eu entendesse, só barulho.
Deixei-me estar, precisava de arrumar aquela cena diante dos meus olhos aqui, neste local de trabalho e não na rua ou numa tasca manhosa em que as conversas e os actos se desenvolvem de faca na liga.
Muitas explicações, tudo ao mesmo tempo e num descuido das outras, a Paula liberta-se e salta como uma fera sobre o Daniel, ataca-o, bate-lhe descontroladamente onde consegue atingir, urra, perdeu um sapato, a blusa rasgada, ele só protege a cara e os genitais.
Toda a gente acode e esquecem-me. Assisto a tudo. De repente acende-se uma imagem dentro de mim, uma visão, sou eu, não é a Paula ou o Daniel, sou apenas eu, sem som, apenas imagens que julguei nunca conseguir recordar... Então foi isto que me aconteceu a mim... Isto, esta coisa de animal, ferir para não morrer, tudo à volta é perigo.

terça-feira

É sem dúvida uma arte, quase uma religião.
Se me queixasse sería uma doutrina. Um modo de vida. Mas não, não me queixo e também não sei explicar porque o faço. Afastar os outros, afastar-me. Simplesmente acontece, quando dou por mim já o disse, já o fiz. Mas não sinto arrependimento, pelo menos naquela forma do remorso, em que se morde os lábios para não voltar a dizer ou se enfiam as mãos atrás das costas para não apontar.
As minhas atitudes custam mais caro a mim do que aos outros. Afinal, eles lá continuam a sua vida, a relacionarem-se com quem não os expulse e eu fico na minha. Eu e o saco de lixo.
Também não fico muito tempo a remoer no assunto, não me deixo ir atrás de lamentações e se houver outras oportunidades falar-se-á, dir-se-á coisas bonitas e coisas feias, daquelas de ataque, vingativas e perfurantes. Sentir-se-á o sabor da vitória na boca, embora um pouco amargo. E nisso os outros não são diferentes de mim, todos gostam do seu pedacinho de ficar por cima. Está-lhes na carne como animal que conquista território.
O Magalhães há-de estar furioso.
Eu já tive a minha parte, agora o contra-ataque será dele.
Tem de ser, ou será um desapontamento.

segunda-feira

- Entre.
- Edna... O Magalhães está aqui...
- Ai sim?
- Posso fazê-lo entrar?
- De maneira nenhuma. Que marque hora, não tenho tempo para o atender.
- Mas é o Magalhães! O Magalhães!
- Eu percebi, não sou surda.
- Então...
- Feche a porta, estou ocupada. Devíamos estar ocupados, não é?!

domingo

O Magalhães não apareceu, não telefona, vou deixando o tempo passar até à última sob o risco do atraso, que é coisa que abomino.
O almoço é à uma. A Mãe é infalível nestas coisas do cumprimento. Acho que por causa de ter sido doméstica toda a vida, sempre com a preocupação de orientar marido, filha e casa, nada falhar, tudo rigoroso na prontidão. Não perdeu esse hábito, nem quando saí de casa nem quando ficou viúva. Talvez lhe faça bem... Pensar que ainda há qualquer coisa que dependa dela, a casa, a vida, o mundo...
Não me apetece nada ir. Sem o Magalhães vamos caír as duas no silêncio. Depois ela há-de insistir para eu comer mais, repetir, alimentar-me, as eternas perguntas sobre o que como "lá fora", o quão magra estou, o ainda não me ter recuperado do meu problema.
Irrita-me quando se refere a mim e à minha depressão como o "meu" problema, di-lo de uma forma quase apagada mas soletrada, como se fosse uma vergonha, um quisto, uma borbulha.
Depois levará a conversa para o casamento, a falta que faz estar-se acompanhada na vida, que eu já não sou uma garota.
É tudo tão previsivel na vida desta mulher, desta Mãe.
Quer saber de mim tal como orienta a sua casa.

sábado

Aos poucos os poucos amigos voltam à cena.
De facto, não serão tão amigos quanto o que se manifestavam ou eu mesma cheguei a pensar.
O meu internamento afastou-os, ou então a verdade afastou-os.
Não me esqueci, mas por enquanto tolero-os a chegarem aos bochechos à minha vida, a ligarem interessadissímos no meu estado de saúde, na minha vida, o que tenho feito.
De quando em vez divirto-me com o meu amigo gay, permito que ache que nada mudou, mesmo que durante meses tenha desaparecido completamente da minha casa, da minha existência. É ele que me põe a par das tendências da moda, dos últimos escandalos da Madona, das alcovitices do resto do grupo.
Volta. Para comer da minha comida e do meu génio, que ele admira.
Volta, para afogar as mágoas e iras sobre uma bichisse qualquer que lhe deu com os pés.
Volta, também, para me espicaçar quanto às noticias sobre o casamento e a viagem de lua-de-mel do outro.
Desta vez não lhe peço que não conte, estou realmente interessada em saber que tudo correu mal, que foi tudo um engano, que não se adaptou ao cabresto e fugiu. Mas não me conta nada disto, porque aquilo que eu quero mesmo que aconteça não aconteceu, tudo correu dentro de uma normalidade esperada.
Não digo nada. Decepciono-me. No meu intimo esperei por um final de uma longa metragem sobre o amor, em que o herói não ficando com o seu grande amor, escolhe o celibato puro e duro e nunca mais se consegue voltar a apaixonar.
Não digo nada, ouço-o e processo a informação, não me lembro dele, lembro-me do Magalhães, lembro-me que vai para dois dias que não o ouço, que ele não me telefona, que amanhã é dia do almoço em casa da minha Mãe e que tudo se torna mais leve quando ele me acompanha.
De repente aborrece-me a companhia do meu amigo, fico saturada da sua voz, dos seus guinchos, acho-o fraco por só assumir a sua homosexualidade entre paredes, as minhas, farto-me.
- Vai-te embora bicha!
- O quê?
- Sai! Rua!
- Edna!
- Fora! E não ponhas cá os pés tão cedo!
- Mas estamos a almoçar...
- Rua! Isto não é a Mitra! E fecha a porta quando saíres!
- Tu...Tu... Tu és tão superior... que ninguém te pega!

sexta-feira

Falemos de mim.
De como a minha maior especialidade continua a ser correr para bem longe com os que se aproximam de mim e tentam dar-me a mão, entender o que vai cá por dentro, satisfazer de alguma forma o meu estado, agradar-me. Quiçá amar-me.
Talvez eu não tenho sido feita para ser amada.
Talvez eu não tenha sido feita para amar.
Talvez a minha revolta provenha dessa insatisfação permanente de me saber na verdade do amor, que aos outros é busca constante, a mim recusa constante.
Não falo daquele. Aquele. Esse já se foi. Até a raiva... e talvez mais raiva e ódio, e repulsa sinta ao amor por saber que havería de passar, custar a lembrar-me do que me doeu e já não custa.
Falemos de mim, então.
De como sinto que podería ser amada pelo Magalhães, que de tanto me estimar e querer proteger, num ápice o bicho do amor ficaría dócil nas minhas mãos e eu faría dele a minha estimação, de trela, de ordens mandadas.
Gosto demasiado do Magalhães para permitir que eu o faça.
Eu não presto. Não me incomoda. E por isso mesmo não o quero no meu saco de lixo.

quinta-feira

- Onde é que tu estás?
- No escritório.
- A esta hora? Vai para casa, vai para casa Edna...
- Ainda não, daqui a nada. Aliás iría mais cedo se você não me tivesse ligado...
- Cheia de humor a esta hora... Não tens fome?
- Nada!
- Não queres jantar?
- Nem pensar! Tenho coisas para terminar aqui!
- Foste à consulta?
- Mas o que é isto? Um interrogatório?
- Não foste à consulta! Não foste!
- E então? Vai dar-me tau-tau?
- Bem que precisavas! E se calhar até gostavas...
- Ah... agora entendo o alcance deste telefonema...
- Não estou a perceber.
- Telefonema erótico?
- Mas que disparate é esse?
- Quer que eu gema? Mas tem que ser rápido, tenho ainda aqui algumas coisas para fazer!
- Absurda! Irritante!
- Ah! Não me faça rir! PÚDICO!
- Eu devía era fazê-la chorar! Chorar muito como fez à Paula!
- O quê?
- Ah! Já lhe passou a vontade de brincar? Você não aprende! Nem mesmo com as bofetadas que a vida lhe dá!
- Mas o que vem a ser isto? Aquela gaja foi fazer queixinhas?
- Você vai acabar sózinha, Edna! Até a mim já me falta a paciência!
- Está a tratar-me por você Magalhães... perdeu a compostura... o verniz...
- Eu dou-lhe o verniz!
Desligou-me o telefone. O estúpido. O Magalhães.
Isto não vai ficar assim!
(Até que enfim... algum sangue na minha vida!)

quarta-feira

- Chegue aqui dentro!
- Eu?
- Sim, você.
- Mas... agora não dá... é que eu...
- AGORA!!!
(Rompe num choro convulsivo. Os outros dão-lhe pancadinhas nas costas, segredam-lhe)
- Não ouviu Paula?
- Mas...
- Entre e feche a porta.
(Lá veio, os lenços de papel num frangalho, a pintura num desatre, o rosto malhado de vermelho)
- Feche a porta.
- Mas, é mesmo preciso? Não me posso demorar...
- Você é surda? Feche a porta!
(Não há paciência...)
- Sente-se. E páre com o choro.
- Não consigo...
- O que você não consegue é parar, olhar-se, deixar de ter pena de si, fazer a sua vida e a dos outros num inferno. A minha, num inferno!
- A sua, Edna?
- Não sou eu que lhe pago o ordenado? Então tenho direito a que cumpra a sua parte do contrato! Eu dinheiro, você, trabalho! Entendeu?
- Estou com problemas... não é fácil...
- Ora! O seu problema está no meio das pernas!
- Como?
- Arranje quem lhe dê uma boa trancada e acaba-se-lhe as crises! Os chorinhos!
- Desculpe, mas eu não lhe admito...
- Quem não se admite é você Paula! Encare-se! Já passou, acabou. Ninguém morreu! Mas está a pôr o seu sustento em risco se permanecer nestas condições em que nada produz e ainda arrasta os outros para um deficiente desempenho. Assim, não dá!
- Está a dizer-me... que... eu não acredito!
- Pois é bem melhor para si que acredite! É a segunda vez que estamos as duas nesta situação. Já lhe chamei a atenção, você insistiu, enrolou-se com o Daniel e voltámos ao mesmo. Agora diga-me... Acha que eu posso aguentar? A empresa pode aguentar esta crise com produções miseráveis como a sua? Não acha que é injusto com os outros que dão tudo?
(O choro parou. Está feia. Caramba, como ficam feias as mulheres que se desfazem num choro por causa de um gajo...)
- E vá arranjar-se! Está num estado lastimável, despenteada, toda esborratada... não a quero ver assim. E agora saia. Feche a porta. E não se esqueça.
- Eu tento, juro que tento mas...
- Feche a porta quando saír.

terça-feira

Fins de semana longos só trazem prejuízo à empresa.
E às pessoas: Maior probabilidade de se aborrecerem lá por casa, saturarem-se da cara que aguentam dia e noite.
A Paula e o Daniel separaram-se mas os problemas não cessaram com o fim da relação. Era óbvio que aquilo tinha de dar mau resultado e os fragementos da bomba ainda por muito tempo haveríam de andar pelo ar à espera de assentaram -claro!- nos seus protagonistas.
O Daniel nunca largou o ninho à séria e a Paula, despeitada e vista como a má da fita, desmancha-lares, é agora olhada pelos outros como presa fácil. Pela mulher do Daniel como a puta de serviço. E pelo Daniel como a encomenda que não se consegue ver livre.
Tudo isto é muito divertido.
Não fora o rendimento ficar aquém, porque na verdade, os problemas de dentro de casa nunca ficam do lado de fora do escritório, e quem se lixa sou eu.
Eu, a bruxa.
Eu, a mal-amada.
Não me aflige minimamente o juízo e as alcunhas que me põem. Por vezes até retiro algum gozo da imaginação tão débil com que me premeiam. Se eu estivesse no lugar deles havería de arranjar uma maneira para me calar a mim própria.
... Mas como não estou, posso dar-me ares de bruxa, se é isso que me acham.

segunda-feira

A acidez da minha vida corrente é tal que até os pesadelos se escaparam.
Não sonho mais, não me recordo mais se sonhei, recorro ao que trago detrás para ter a certeza que já sonhei, que já tive pesadelos que me amachucaram e naquele tempo o que quería era não os ter.
Até a insatisfação se revela comum... comparações entre um antes e após, a vida e a moribunda que não sabe onde é a porta do céu nem a do inferno e que, invariavelmente se engana numa e noutra, buscando sempre a que não é, a que não quer, a que rejeita e acaba ciclica e viciosamente por enroscar no retorno.
Eu que sempre condenei o curto e escasso limite do respirar, vejo-me na posição do bafo atirado ao espelho, um desenho feito na ponta de um dedo, a medo, cauteloso, não vá descobrir uma imagem que não goste.
Mas o pior de tudo é esta consciência ingrata que me sussurra que acabo aos poucos e da acção não acho o pau que encrava a engrenagem e faz explodir a máquina. A dos sonhos. Simplesmente obsoleta.
Talvez o meu tempo tenha passado.
Reservo-me um último sonho, um último pesadelo. Sem nada é que não dá mesmo.

domingo

Falemos de mim então.
De como sempre estes Domingos me consomem para além da paciência dos almocinhos na casa da Mãe, das conversas familiares, da curiosidade mórbida das vizinhas em querer saber se ainda sofro de males da cabeça, as perguntas sobre a identidade do Magalhães, as vãs esperanças da minha progenitora e a minha saturação quase nos limites quanto à vida em geral e no particular, a minha falta de vida.
Falemos de mim, pois: De como há dois meses que morro aos poucos,definho numa sorte lenta a normalidade para que corro todas as manhãs, trabalho todos os dias, regresso sem fome de nada e me deito já moribunda até ao enterro seguinte.
Eu não sou normal.
Não quero uma vida normal e estável, não quero segurança e uma velhice confortável.
Quero tudo agora, todos os riscos, todos os perigos, todas as mortes tentadas até me morrer de vez e não desejar mais nada da vida.
Abro o meu saco e vejo restos de mim, ainda assim agitados na mutilação infligida pela normalidade a que me obrigam ser. E agora? Agora procuro, remexo e não acho nada de mim.
Não gosto de mim como sou.
Quero-me de volta.
Toda, inteira. Mas sem o inferno do amor.

sábado

De quando em vez passo a noite no quarto de visitas. Gosto de alternar a cama onde pernoito, dá-me uma sensação de novidade e de quebra na monotonia.
O cheiro a novo agrada-me.
No meu quarto tenho vezes em que sinto o odor dele... eu sei que isto não passa de uma partida da minha cabeça, uma memória odorífera que se instalou e que ainda não limpei devidamente. Mas lá chegarei, há-de haver o dia em que ele nunca existiu.
Estas mudanças de leito dão cabo da minha empregada, mais trabalho e a expectativa sobre onde vai mudar os lençóis. Noutro dia perguntou-me se eu ía mudar de vez para o quarto de hóspedes. Percebi que quería informações, não era uma mera pergunta curiosa mas a minha seca negativa arrumou-a e não voltou a tocar no assunto.
Até eu já me coloquei esta questão: E se eu mudasse? Não esporadicamente consoante a veneta, mas em definitivo, ou pelo menos durante um largo tempo. Mas surge-me uma inquietação qualquer que me deixa indecisa, por vezes quase ansiosa como se fosse ordem a cumprir e lá volto ao saltitar. Depois, o meu saco de lixo é diferente naquele quarto, parece descabido, mal recheado, falta-lhe a desordem dos membros soltos, de veias, de dores, de tudo o que o faz vivo e me contempla quando o abro... Fica asséptico, higienizado e eu fico a sentir-me uma estranha na minha própria casa.
Se a situação financeira fosse mais favorável mudava daqui para fora.
Há muito couro meu pendurado nestas paredes.

sexta-feira

- Porque não acabamos com estes formalismos?
- Quais formalismos?
- Este tratamento do você, por exemplo...
- Ah, isso. Como queira, mas eu sou incapaz de o tratar de outra forma.
- Mas porquê? Se até eu...
- Se até já me viu nua, não é o que vai dizer?
- Não, Edna, não era o que ía dizer. Eu falo de partilha, troca.
- Sim, sim. Mas que me viu nua é bem verdade!
- E você a dar-lhe! Tudo para si se resume a um corpo, à carne, não é?
- Nem lhe vou responder. E não atente à minha inteligência, ofende-me.
- Pois deixe-me dizer-lhe que mulheres nuas é o que não me falta!
- Ora até que enfim! Um assunto interessante! Conte-me. E não se poupe aos pormenores!
- Tarada!
- Nem tanto, Magalhães. Isto tem andado numa secura que nem lhe digo.
- Uma secura? Você sente-se bem? Passa-se alguma coisa?
- Lá está você com esse tom paternalista que me irrita solenemente! Quer que o deixe a jantar sózinho?
- Continua a mesma picadinha das carochas de sempre! Nem a vida a muda!
- Picadinha das carochas?
- Sim, picadinha das carochas!!!
- Mas que raio de coisa é essa? Nunca ouvi tal coisa! Até me dá vontade de rir... O que é que isso quer dizer?
- Você não me diga que nunca ouviu esta expressão?
- Eu não!
- Está a falar a sério?
- Não deve estar à espera que eu vá jurar...
- Mas é impossível nunca ter ouvido... Picadinha das carochas! Significa o mesmo que... Escamada!
(Não consigo conter mais o riso)
- De que se ri? Ah! Tenho estado a ser gozado!
- Deixe-se disso! Diverte-me!
- Gosto de a ver rir Edna. Você é muito séria. Demasiado séria para a tua idade.
- Hum... que evolução. Da terceira pessoa directamente para o toi...

quinta-feira

O trabalho continua a ser o meu momento alto. A minha inspiração. As minhas manhas,o meu saber técnico e conquistador.
Mas os tempos estão mesmos dificeis e a recessão não dá tréguas e eu tive de aprender a fazer concessões para que a firma não perdesse clientes e conseguisse ganhar outros.
No fundo, dobrou-se o trabalho para atingir exactamente os mesmos rendimentos.
E eu tive de me desdobrar igualmente em chefe de equipa já que - ponto assente - o Magalhães não tem mais condições de trabalhar comigo.
Isso sería terrível e completamente suicida. Ele a saber de mim como sabe , as interferências a nível de trabalho, nem pensar.
As poucas entrevistas que fiz para admissão de alguém deram-me um cansaço tremendo: nada de inovador, interessante, tudo muito plane, básico, muito cru. Eles cheio de jogo para me impressionar, elas muito rigidas e masculinizadas.
Na verdade o Magalhães desempenhava muito para além do que um chefe de equipa tem como funções atribuídas e, confesso-o, a mim falta-me a veia contemporizadora dele que moderava os humores desta malta.
Continuo a funcionar muito na base da ordem a cumprir quando as coisas parecem não ter sido entendidas à primeira, e a paciência esgota-se em menos de um fósforo perante quezilias de um não querer desenvolver um qualquer projecto com determinado elemento só porque desacordam em coisas do foro privado.
Trabalho todos os dias, sem excepção.
Ao Domingo lá vou ao beija-mão da minha Mãe à hora do almoço, mas o resto do dia levo-o pendurada em pesquisas.
Quando páro sinto-me cansada.
Quando retomo energizo-me.

quarta-feira

Não tenho mais ninguém a não ser a minha Mãe. Refiro-me a familia directa, claro. Depois há a roda de amigos e há o Magalhães, sem catalogação possível. Não é um namorado e é menos que meu pai, é mais do que um amigo mas não o desejo amante.
A minha Mãe bem tenta fazer de casamenteira, quando por vezes vamos ambos almoçar com ela ao Domingo. Aquelas conversas irritantes sobre prendados, a herança, netinhos.
Acabo sempre por me aborrecer e ela promete sempre que não volta a tocar no assunto, mas cai tudo em saco-roto.
O Magalhães parece lidar muito bem com este tipo de situação, graceja, dá-lhe corda, pisca-me o olho. No fundo provoca-me, sabe bem o que penso sobre isto. Mas também sabe quando é a altura de parar e evitar a minha ira, saíndo porta fora e deixá-los na companhia um do outro a fazerem projectos da carochinha.
Não me quero casar, não quero ter filhos e não quero ninguém na minha cama.
Pelo menos até de manhã.
Quero ser só.
Orgulhosamente só.
Poder chorar sem ninguém saber.

terça-feira

Vai para mais de dois meses que não tenho sexo.
Nada.
Nem um apetite que me leve as mãos a saciar-me. Nada.
Em contrapartida tenho sido bem fornicada pelo idiota de serviço que me cobra cada vez mais. Justificações que dispenso, como se a crise dos combustíveis estivesse intimamente ligada a psquiatria ou análise clinica; ou ele tivesse aumentado a funcionária que me atende de cabeça baixa, os óculos cravejados de vidros a imitarem pedras preciosas sempre a escorregarem pelo nariz tão pequenino que parece ter sido feito por engano; ou finalmente tivesse acertado com a cor das paredes e da alcatifa.
Masoquismo puro. Leva-me o couro e cabelo e não há qualquer evolução.
Em dois meses não se passa nada e passa-se tudo.
É uma contradição a vida.
Gosto de sexo e parece que perdi o interesse por ele.
A crise económica dispara a cada dia e eu pago mais ao meu analista.
O quarto de hóspedes finalmente está arrumado. Depois de ter devolvido a mobilia que inicialmente escolhera e ter pedido aos pintores para voltarem e taparem a cor que lá estava.
Falo todos os dias com o Magalhães mas ele não voltou a trabalhar aqui.
Vai para mais de dois meses que a minha vida se rachou numa metade perfeita, mas completamente absurda de tão arrumada.

segunda-feira

Falemos de mim, então.
Do que aconteceu neste véu de tempo em que a porta se fechou, se trancou e eu deitei a chave para o mar imenso do esquecimento.
Falemos de mim e do que não lembro mais. Tão pouco dele.
O tempo cura tudo, diz o povo, e tem absoluta razão.
Nem sequer uma mágoa ficou para contar a história. Ou prosseguir num rosário de lamentações àcerca de um tempo perdido, de um amor derrotado.
Arrasto o meu saco.
Tanta coisa nova e no entanto, tanto do que já vi e do que conheço. Não me venham falar de loucuras: o consciente de cada um faz-se da maneira que cada um mais gosta. O meu de plástico, em saco de lixo, são coisas descartáveis, não regressam, não se emendam, são isso mesmo, lixo.