sexta-feira

- Edna, está aqui o Magalhães.
- Mande-o entrar.
- Que cara é essa? Está doente?
- É a minha. Estou de óptima saúde, graças a deus!
- Ah! Graças a deus, que lindo! Esse seu deus...
- Ainda agora cheguei e parece que começamos mal...
- Ora! Não seja assim! E deixe a porta aberta.
- A porta aberta?
- Sim, não feche a porta. Penso que a conversa é rápida, não é?
- É? Não sei...
- Não sabe? Como não sabe? Você é que me disse que tinhamos de conversar! Sente-se, sente-se!
- E você é que me ligou a concordar!
- Ouça, não me faça perder tempo, vá directo ao assunto!
- Você faz-me perder as estribeiras, Edna!
- Fale!
- Não há muito para dizer. Quero que saiba que aquilo que aconteceu em sua casa não foi pensado, não o planeei, aconteceu...
- Aconteceu porque quisemos os dois!
- Sim, claro! Não, não é isso! Eu não quería!
- Bom, daqui a pouco vai-me dizer que o violei...
- Não seja sarcástica! Sabe o que quero dizer. Não houve premeditação da minha parte, mas de repente, de repente... eu, você... tem de entender!
- Não estou a perceber nada, Magalhães.
- O que lhe quero dizer é que aquilo foi uma reacção animal, eu não sou homem de fazer aquelas coisas sem sentir alguma coisa por uma mulher...
- E não sentiu? Quer dizer, não sente?
- Claro que sim! Não, quero dizer, não nesses termos em que está a tentar pôr as coisas!
- Mas que coisas, Magalhães? Que tanto eu como você nos sentimos atraídos como uma mulher e um homem? Eu não estou a falhar-lhe de amor, de paixão! Poupe-me!
- Eu conheço-a Edna! Você não é assim! Não é só assim!
- Mas assim como?
- Uma predadora!
- Aí é que você se engana...
- Você está a precisar de mais umas palmadas como eu já lhe dei! Mimalha! Pirralha!
- Acho que estamos conversados!
- Ah, pois estamos!
Levantou-se, fechou a porta à chave e tirou o casaco.

quinta-feira

Falemos de mim, então.
De como este consultório de tanto aqui vir se parece ter entranhado na minha pele, na minha roupa, levo os medos e as taras destes doidos que aqui permanecem sentados, bem comportados, na sala de espera e depois se organizam em crimes fortuitos arquitectados na mente torcida que destorcem com outro alucinado que se intitula doutor.
Não há diferença entre eles.
Nem sequer no canudo que um aparentemente parece manejar, são todos formados em deformações, em desvios, em submundos que fazem parecer o meu uma voltinha no carrocel.
Agora sou eu, entro.
O canto do sofá à minha espera, a alcatifa à espera dos meus saltos, as paredes a aguardarem o meu ar de vómito, ele no seu trono improvisado ansioso pelo meu decote e pelos meus sons que o lubrificam na imaginação doentia.
Hoje faço-lhe a vontade.
Acaricio o meu peito enquanto falo da conversa que irei ter com o Magalhães, deixo que os mamilos rompam a seda da blusa impedindo-o de tomar notas, a caneta em riste é o simbolo do seu pobre falo que sufoca nas calças de má qualidade, enquanto os pés se roçam um no outro aumentando a excitação de uma visão de me pôr as mãos em cima.
Falo, falo, falo, debito até o atordoar, não me ouve. Nem eu a mim.
Levanto-me, estendo-lhe a mão que ele aperta suado na sua, limpo a minha à saia, sinto-me enojada, pressinto que se veio e saio.

quarta-feira

- Magalhães? Sou eu.
A partir daqui o tom de voz dele alterou-se, só o ouvía a dizer sim, pois, hum hum, está bem.
Desliguei.
Vamos falar mas aqui no escritório. Não o quero na minha casa
Lá tería a porta fechada. E seríamos só nós dois. à solta.

terça-feira

A melhor maneira de lidarmos com um problema é ir ter com ele. Arrumá-lo de vez, nem que seja para nos certificarmos que não há solução.
Mas eu acredito que há uma solução para cada caso. Pode é não ser a gosto. E isto faz-me lembrar alguém que não devo recordar. Porque é um problema resolvido que não teve a solução que eu gostaría. Ou que ele gostaría.
É bem provável que as soluções passem pelas perspectivas individuais, mas isso não faz com que eu encare a minha como a errada.
Por agora tenho uma questão entre mãos que me está a ocupar espaço de atenção, coisa que me faz falta com a vaga que a Paula vai deixar.
Falo do Magalhães, ele tem razão, precisamos de falar.
Só espero que a conversa não descambe. Para o lado emocional.

segunda-feira

No dia que estive em casa da Paula e depois da longa conversa que tivémos, ao saír cruzei-me com o Magalhães.
Foi estranho.
Ficámos parados naquele meio-tempo da surpresa em que há coisas por dizer mas não queremos dar a entender que o encontro é perturbador. No fundo não há nada de especial em tê-lo encontrado ali: É sabido que é o protector da Paula, que ela o chama por tudo e por nada. Resta saber se não o aninhará na cama também; Talvez não... Ela está demasiado envenenada pelo outro para querer mais alguém a aquecê-la.
Paula estúpida.
Nada mais posso fazer, o mal foi ela que o fez.
Mas acho que ficou delimitado o risco que pisou e a impossibilidade de voltar aqui à empresa, a falta de condições emocionais e até profissionais, a normal comparação entre um antes e um após que nem mesmo eu podería esquecer. A minha ida à sua casa serviu-me para me tentar encontrar, saber se ela era o que eu tinha sido, a vandalização do corpo na mente pelo que se chama amor, eu saltei antes de chegar ao estádio em que ela está, ela não soube parar.
Ficou nesse dia e na sala escura da Paula determinado que o enterro era o seu, eu nem sequer chegava para o velório, aparecía sim, mas na posição de sempre, patroa, um ponto final no contrato de trabalho.
O objectivo da minha visita foi cumprido, não houve choros, não houve promessas sobre emendas.
Saí com um peso no peito, ainda tenho esse peso no peito. E uma funcionária de excepção a menos.
Quanto ao Magalhães, apenas uma frase. Dele.
-Edna, temos de falar.

domingo

- Entre, feche a porta. Por favor.
- Diga, Edna.
- Faça as contas à Paula. Veja tudo o que lhe é devido, até ao cêntimo. Depois de ter as contas feitas voltamos a conversar.
- A Paula vai-se embora?
- Preciso disso ainda esta manhã.
- Ela vai-se embora?
- Quando saír feche a porta. E não preciso lembrar-lhe, concerteza, que ocupando o lugar que ocupa, isto é assunto sigiloso...
- Claro, claro, fique descansada!
- Pode ir. Não se esqueça de fechar a porta.
Depois de saír, tenho vontade de gritar, bater, partir coisas, fazer qualquer coisa que demonstre a minha revolta, a minha ira.
Não é justo, não é justo!

sábado

Tal como eu prevía deixou-me pendurada à porta.
Eu sabía que ela estava em casa, quase senti a respiração dela, o olho no olho-mágico a espreitar-me.
Quando me dirigía para o elevador senti o trinco a abrir-se. Não me voltei. Ela veio para o patamar, ficou encostada à ombreira, sentía-lhe os olhos à espera do contacto.
Só quando disse o meu nome é que me voltei.
Está um farrapo. Parece que envelheceu precocemente. Ao vê-la custa-me recordar a profissional que tive ao meu serviço, inovadora, empreendedora, arrojada, uma valentia inspiradora que punha os outros a mexer e que eu precisava para manter o sangue na guelra dos mais antigos.
Neste instante não acho nada. Se me cruzasse com ela na rua sería inexistente, um obstáculo a evitar. Para onde foi a Paula que eu conheci?
Para o amor?
Que amor cabrão é este que ataca como um vírus e mata as pessoas dentro das pessoas, suga-as e cospe um caroço amargo, comum, imprestável, feio?
Entrei. Escuro. Há quanto tempo é noite aqui dentro?

sexta-feira

Dormi mal.
Aquela maluca não me sai da cabeça, até sonhei com ela, uma coisa estapafúrdia daquelas que só mesmo nos sonhos. Só me faltava isto. Já tenho tanta gente nos meus pesadelos, ainda mais esta Paula.
Desde ontem que me fixei numa coisa e não consigo concentrar-me em mais nada para além disto: Fazer-lhe uma visita.
É bem provável que nem sequer me abra a porta mas não fico bem comigo se não for a casa dela, vê-la, olhá-la nos olhos, ouvi-la chorar e berrar e até gritar comigo.
Hoje não vou ao escritório.
Hoje vou a casa dela.
Estou com a sensação de que vê-la é encontrar-me comigo.

quinta-feira

- Entre, feche a porta, não quero a porta escancarada.
- Não posso demorar, estou à espera da chamada do cliente do Norte...
- Não é coisa demorada.
- Diga.
- A Paula?
- Ahhh...
- Ah o quê?
- Telefonou, a dizer que está doente...
- Doente.
- Sim... Posso ir?
- Não. Que doença?
- Isso não sei muito bem...
- Páre de a encobrir, sabe como detesto mentiras, ainda mais tão escandalosamente arranjadas.
- A sério Edna, não sei! Só sei que telefonou a dizer que não podía vir!
- Muito bem.
- Posso ir? É a chamada...
- Não, não pode ir. Ligue para a Paula.
- Ah, tudo bem! Logo que atenda a chamada...
- Agora. Daqui do meu telefone.
- Agora???
- Será que ouço o eco da minha voz?! Sim, agora!
- Mas...
- Não discuta Afonso, por favor ligue-lhe.
- Não posso Edna...
- Então?
- Não posso...
- Quer contar-me o que se passa?
- Foi uma cena... A Paula apareceu...
- Onde?
- Fizémos a meia-noite em casa do Daniel...
- E?
- A Paula aparaceu, fez um escandalo, aos gritos à porta do prédio, a contar tudo...
- Lindo!
- O Daniel foi ter com ela e pediu-lhe para parar com aquilo...
- Claro que ela não parou...
- Não, não, desatou a tocar a todas as campainhas do prédio, a vizinhança, um escabeche dos diabos, fomos todos ver se a acalmávamos mas a mulher tinha o diabo no corpo, não paráva de dar pontapés, estava entornada, sei lá!
- Que bela cena...
- Mas a coisa piorou quando a mulher do Daniel chamou a Policia e aí é que foram elas!
- O quê?! Saíu melhor que a encomenda!
- Pois foi, veio a Policia mas até a eles ela desatou a mandá-los para o... está a perceber?
- Estou, mas gostava muito que o dissesse.
- Para o, o, percebe?
- Já percebi, go on...
- Bem, resumindo: A bófia levou-a mas não a prendeu. Devem ter tido pena, sei lá...
- E você?
- Eu?
- Teve pena?
- Nem sei... No inicio estava-lhe com uma raiva tremenda, acho que até me apeteceu dar-lhe uns carolos mas depois...
- E deu?
- Claro que não Edna! Eu não bato em mulheres!
- E depois?
- Depois tive pena dela... Saber como ela é aqui, conhecer a profissional e vê-la daquela forma, foi uma coisa mesmo triste. Acho que ela nunca mais vai aparecer.
- Vai sim. Pelo menos uma última vez.
- Acha?
- Pode ir Afonso. E deixe a porta aberta.
Abomino estes festejos.
Hoje é exctamente igual a ontem.
Estou a mesma do ano passado, sinto o mesmo que já sentía.
Apenas me dói a cabeça.
Despertei com uma barulheira infernal e era o fogo de artificio, as tampas dos tachos, assobios.
Estúpidos. São estúpidos ao enganarem-se. Nada se alterou.
Hoje estamos vivos e amanhã estamos todos sete palmos abaixo.